Espelho Maldito
Capítulo 1: O Encontro com o Espelho
Carlos se sentia exausto. Depois de meses se recuperando de uma fase turbulenta em sua vida pessoal, mudar-se para aquela casa nova representava uma chance de recomeço. Era uma construção simples, mas carregava a promessa de um futuro mais calmo. Ele ainda estava se adaptando ao espaço, tentando preenchê-lo com objetos que dessem uma sensação de lar. Mas algo parecia faltar.
Em uma tarde nublada de sábado, enquanto caminhava pelas ruas do bairro, Carlos avistou uma loja de antiguidades que nunca havia notado antes. Ela ficava em uma esquina, escondida entre árvores e prédios. Havia algo de curioso naquele lugar, uma aura que o atraía sem que ele soubesse explicar o motivo.
Ao entrar, foi recebido pelo som de sinos de vento pendurados na porta. O cheiro de madeira envelhecida e tecidos antigos preenchia o ar. A loja era pequena e apertada, cheia de móveis, quadros e outros objetos que pareciam pertencer a tempos distantes. Carlos caminhou entre as prateleiras, passando os olhos sobre relógios de parede, cadeiras de balanço e candelabros desgastados pelo tempo. Nenhum dos itens parecia chamar sua atenção — até que ele o viu.
O espelho estava no canto mais afastado da loja, grande e imponente, com uma moldura de madeira escura e esculpida com detalhes quase barrocos. A superfície do vidro estava ligeiramente embaçada, mas havia algo na forma como refletia a luz do ambiente que fez Carlos parar imediatamente. O espelho parecia olhar de volta para ele, como se o estivesse esperando.
“Interessado?”, perguntou uma voz rouca atrás dele. Carlos se virou e viu um homem de meia-idade, com roupas gastas e o cabelo grisalho. Era o dono da loja, Antônio, que observava Carlos com um olhar que parecia atravessá-lo.
Carlos hesitou. Sentia uma leve inquietação, mas ao mesmo tempo, não conseguia desviar os olhos do espelho. “É… interessante”, murmurou.
“Este espelho é antigo, mais velho do que parece”, disse Antônio, aproximando-se. “Dizem que ele já passou por várias mãos, cada uma com sua própria história. Talvez esteja esperando por alguém com uma nova.”
Carlos franziu a testa. A ideia era absurda, mas algo no tom de Antônio parecia mais sério do que o necessário. “E por quanto está?”, perguntou, tentando soar casual.
Antônio fez uma pausa, observando Carlos com um olhar que ele não conseguia interpretar. “Faço um bom preço para você.”
Sem pensar muito, Carlos aceitou. Ele não sabia por que estava tão decidido a levar o espelho, mas parecia que algo naquele objeto o puxava, como se fosse um elo perdido entre ele e aquele novo lar.
Ao retornar para casa com o espelho, Carlos o colocou na sala de estar, em uma parede vazia entre duas janelas. A sala parecia ter mudado de atmosfera imediatamente. O espelho dava ao ambiente uma estranha profundidade, como se a casa fosse maior do que realmente era. Carlos olhou para si mesmo no reflexo e por um momento teve a sensação de que havia algo de diferente em seu próprio rosto — talvez fosse apenas o cansaço.
Naquela noite, enquanto preparava o jantar, Carlos olhou para o espelho de relance várias vezes. Cada vez que o fazia, sentia um pequeno arrepio. O espelho refletia a sala, claro, mas parecia fazer isso de uma maneira… diferente. Ele não conseguia identificar exatamente o que era, mas havia algo na forma como os objetos apareciam no reflexo que o incomodava. Talvez fosse apenas o fato de ser uma peça antiga, com um ar misterioso.
Depois de jantar, Carlos se sentou no sofá em frente ao espelho, observando seu reflexo. O silêncio da casa era quebrado apenas pelo som suave do vento do lado de fora. Conforme olhava, uma sensação de desconforto começou a crescer. Ele tentou afastar a ideia, pensando que era apenas sua mente pregando peças após um dia longo e estranho.
Por fim, decidiu ir dormir. Deixou a luz da sala acesa, como se o espelho, de alguma forma, pudesse ser menos intimidador sob a iluminação clara. Mas, mesmo ao se deitar, a imagem do espelho ainda pairava em sua mente. Sentia que, de alguma forma, ele havia trazido algo a mais para sua casa — algo que ele ainda não conseguia entender completamente.
E essa sensação, ele sabia, não desapareceria facilmente.
Capítulo 2: Primeiras Visões
Na manhã seguinte, Carlos acordou com a luz do sol atravessando as cortinas do quarto. Ele se espreguiçou, mas sentiu uma estranha tensão em seus músculos, como se não tivesse dormido o suficiente. Sua mente ainda estava inquieta, assombrada pela presença do espelho na sala de estar. Tentou afastar a sensação, se lembrando de que era apenas um objeto. Objetos não tinham vida, não podiam afetar o ambiente de forma alguma.
Depois de um café rápido, ele se sentou no sofá em frente ao espelho, como fizera na noite anterior. Desta vez, a luz do dia dava ao espelho uma aparência menos ameaçadora. Ainda assim, havia algo diferente em seu reflexo. Ele olhou mais atentamente para si mesmo. Seu rosto parecia o mesmo, mas era como se estivesse observando alguém ligeiramente distante, uma versão de si que não estava completamente ali. Carlos sacudiu a cabeça, rindo de si mesmo. Era absurdo pensar que um espelho poderia causar tal inquietação.
Decidido a ignorar essas sensações, Carlos saiu para resolver algumas pendências. Ao voltar no fim da tarde, ele novamente se encontrou frente a frente com o espelho, como se a peça tivesse uma força gravitacional que o atraía. Dessa vez, algo aconteceu.
Ao se sentar para descansar, Carlos notou uma mudança no reflexo do espelho. No lugar da sala de estar, viu uma cena que o fez congelar. Ele estava em um parque. O parque que costumava frequentar com Marina, sua ex-namorada. As árvores ao redor, a luz do entardecer refletida no lago — tudo era idêntico àquele lugar que ele conhecia tão bem. Mas algo estava errado.
Carlos se levantou de súbito, seus olhos fixos no espelho. Ele nunca havia visto algo assim antes. Tentou tocar o vidro, como se pudesse romper a barreira entre o presente e a memória que se formava diante dele. No reflexo, ele via Marina, de mãos dadas com ele, caminhando pelo parque. Aquela deveria ser uma lembrança boa, mas o que sentiu foi uma onda de desconforto. Marina estava estranhamente distante, seus olhos não encontravam os dele, e o sorriso no rosto dela parecia… vazio. Carlos sabia que, na realidade, aquela caminhada fora um momento feliz, mas algo na expressão de Marina no reflexo o incomodava profundamente.
Ele esfregou os olhos, acreditando que estava cansado ou que sua mente estava simplesmente se enganando. Mas quando olhou novamente, a cena continuava. Carlos sentiu o coração acelerar, uma mistura de fascínio e medo tomando conta de seu corpo.
Aquela visão no espelho parecia tão real quanto qualquer lembrança que ele pudesse ter, mas havia um detalhe inquietante. A Marina que ele conhecia jamais teria aquele olhar gelado. Era quase como se a pessoa no reflexo fosse uma estranha — uma versão distorcida da mulher que ele amava. Ele se sentou novamente, confuso, tentando processar o que estava acontecendo. A visão começou a desaparecer gradualmente, deixando para trás apenas o reflexo comum da sala de estar.
Carlos respirou fundo, tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Não fazia sentido. Talvez fosse o resultado de noites mal dormidas, o estresse de uma vida em mudança, ou simplesmente a estranheza do espelho antigo. Ele tentou se convencer de que era apenas isso — um devaneio causado pelo cansaço e pelo peso emocional que ele ainda carregava por causa do término com Marina.
Mais tarde naquela noite, no entanto, o desconforto não passou. Carlos decidiu ir para a cama mais cedo, na esperança de que uma boa noite de sono apagasse as imagens que continuavam rondando sua mente. Mas, ao deitar-se, as lembranças do parque e do olhar vazio de Marina o perseguiam. Ele fechou os olhos, mas a sensação de estar sendo observado o manteve acordado por horas.
Acordou no meio da noite com o coração disparado, certo de que ouvira algum barulho vindo da sala. O silêncio da casa, por si só, parecia carregado de tensão. Relutante, ele se levantou da cama e caminhou até a sala. A luz fraca da lua iluminava parte da parede onde o espelho estava pendurado. Carlos parou à frente do espelho novamente, seu reflexo parecia perfeitamente normal desta vez, mas ele não conseguia afastar a sensação de que algo estava errado.
No reflexo, a sala parecia um pouco diferente, mas ele não conseguia identificar o que exatamente. Era como se os contornos dos móveis estivessem ligeiramente distorcidos, como se a sala no espelho pertencesse a uma realidade paralela. Uma versão quase idêntica, mas não exatamente a mesma. Carlos desviou o olhar, incerto se deveria continuar encarando aquele objeto que começava a tomar conta de sua mente.
Sentindo o corpo pesar de cansaço e a mente sobrecarregada, ele decidiu que não pensaria mais nisso naquela noite. Voltou para o quarto, mas sabia, no fundo, que a sensação de desconforto não o deixaria em paz tão cedo.
Capítulo 3: Memórias Distorcidas
Os dias que se seguiram foram marcados por um crescente desconforto. Carlos evitava o espelho tanto quanto possível, mas sempre acabava sendo atraído de volta para ele. Havia algo de hipnótico naquele objeto, uma força que parecia puxá-lo para mais perto toda vez que ele tentava se afastar. E as visões continuavam.
Na segunda noite após a primeira visão no espelho, ele foi novamente confrontado com uma memória que, desta vez, lhe era ainda mais dolorosa. Estava sentado no sofá, tentando se concentrar em um livro, quando o reflexo no espelho mudou outra vez. Era sua sala de estar, mas com algo fora do lugar. Ele olhou diretamente para o vidro, e de repente estava de volta ao seu apartamento antigo, onde morava com Marina.
O ambiente refletia um tempo anterior ao fim de seu relacionamento, mas como na primeira visão, havia algo de errado. A sala parecia envolta em uma luz opaca, e Carlos, no reflexo, não estava relaxado ou feliz como deveria estar. Ele estava sentado ao lado de Marina, mas a expressão no rosto dela era tensa, quase zangada.
A cena progrediu, mostrando uma discussão que Carlos sabia que haviam tido, mas as palavras que ouvia não correspondiam ao que ele lembrava. Marina falava sobre algo que ele jurava nunca ter ouvido, acusando-o de coisas que ele nunca fez. No reflexo, sua voz parecia mais fria, mais dura do que ele lembrava. E o que mais o aterrorizava era a maneira como ele mesmo respondia: defensivo, agressivo, como se estivesse sendo manipulado a agir de forma que não reconhecia.
Carlos sentiu o estômago revirar. Ele sabia que aquela discussão havia sido real, mas o que via e ouvia no espelho era uma versão distorcida, como se algo estivesse reescrevendo suas memórias. A briga terminava com Marina se afastando, com uma expressão de dor e desespero que Carlos não lembrava de ter visto. Ele sabia que ela estava chateada naquela época, mas a profundidade do sofrimento no rosto dela parecia nova, como se fosse algo que ele nunca havia notado antes.
Tentou desviar o olhar, mas era como se estivesse preso, forçado a assistir a uma versão alternativa de sua própria vida. O espelho parecia ter ganhado vida, e as memórias que refletia estavam além de seu controle. Quando finalmente conseguiu desviar os olhos, Carlos estava ofegante, o corpo trêmulo. Ele levantou-se de um salto, o coração martelando no peito.
As visões não estavam apenas distorcendo sua percepção do passado — estavam alterando o que ele lembrava de si mesmo. Marina e ele tinham tido problemas, claro, mas ele jamais se lembrava de ser tão cruel, de machucar alguém daquela forma. Ele olhou para o espelho com um misto de horror e frustração. O que era aquilo? Como um simples objeto poderia mexer tanto com sua mente?
Naquela noite, decidiu que precisava de ajuda. No dia seguinte, marcou uma sessão com sua psicóloga, Silvia, a quem vinha consultando esporadicamente desde o fim de seu relacionamento. Quando chegou ao consultório, Silvia o recebeu com um sorriso caloroso e o convidou a se sentar. Carlos hesitou por um momento antes de falar, incerto sobre como explicar o que vinha acontecendo.
“Você acredita que um objeto pode… mudar suas memórias?” Carlos perguntou, sua voz hesitante.
Silvia franziu o cenho levemente, inclinando-se para frente na cadeira. “Não sei se entendi o que você quer dizer. Como assim mudar memórias?”
Carlos suspirou, passando a mão pelo cabelo. “Eu comprei um espelho, recentemente. E… eu tenho visto coisas nele. Coisas do meu passado, mas distorcidas, como se… como se o espelho estivesse manipulando minhas lembranças. Eu sei que soa absurdo, mas não parece um sonho ou uma alucinação. Parece real.”
Silvia o observou por alguns segundos, avaliando cuidadosamente as palavras de Carlos. “Você já mencionou que tem dificuldade em lidar com o término do seu relacionamento com Marina. Talvez o que está vendo no espelho seja uma manifestação desse processo. Traumas e memórias reprimidas às vezes surgem de maneiras que não entendemos imediatamente.”
“Mas o que estou vendo não é real!” Carlos interrompeu, exasperado. “Eu nunca disse aquelas coisas, nunca agi daquela forma! E o jeito que ela me olhava… Não era assim! Eu sei que não era.”
Silvia manteve a calma, sua expressão ainda atenta e compreensiva. “Carlos, às vezes nossa mente altera o modo como lembramos de eventos passados. E quando algo nos causa muita dor, como um relacionamento rompido, é comum que nossas memórias se distorçam. O que você está vendo no espelho pode ser uma representação do seu subconsciente lidando com essa dor não resolvida.”
Carlos balançou a cabeça, mas as palavras de Silvia não o convenceram. Era verdade que o fim com Marina ainda o afetava, mas o que ele via no espelho ia além de qualquer racionalização psicológica. Ele sabia que aquelas memórias estavam sendo manipuladas por algo além dele. No entanto, como poderia explicar isso sem parecer insano?
Antes de sair, Silvia sugeriu que ele anotasse o que via e sentia, como uma maneira de organizar seus pensamentos e talvez encontrar algum padrão que fizesse sentido. Ele concordou, embora duvidasse que isso o ajudaria a entender o que estava acontecendo.
De volta à sua casa, Carlos ficou parado diante do espelho por um longo tempo. Ele estava cansado, tanto fisicamente quanto mentalmente. Mas, no fundo, sabia que aquilo não era apenas um truque de sua mente. O espelho estava brincando com ele, distorcendo sua percepção da realidade, e ele precisava descobrir por quê.
Naquela noite, as visões voltaram, mais intensas e distorcidas do que nunca.
Capítulo 4: A Escuridão Interior
Naquela noite, Carlos se deitou na cama com a mente tumultuada. Não conseguia apagar as imagens que o espelho havia projetado — memórias distorcidas, cheias de dor e arrependimento, mas que não eram suas de verdade. Ele havia anotado tudo como Silvia sugerira, mas não encontrava um padrão. O que via era aleatório e aterrorizante. A cada nova visão, o espelho parecia querer puxá-lo mais fundo em um abismo de culpa e confusão.
Pouco antes de adormecer, Carlos ouviu um som vindo da sala. O ranger suave, como o de uma madeira velha se mexendo. Seu corpo congelou por alguns segundos, o coração batendo forte no peito. Relutante, ele se levantou, sabendo o que encontraria. Caminhou lentamente pelo corredor até a sala, onde a fraca luz da lua atravessava as cortinas, iluminando parcialmente o espelho.
Ele parou à porta, observando o reflexo da sala. Tudo parecia em ordem — nenhum movimento estranho, nada fora do comum. Mas conforme ele se aproximava, algo aconteceu. O reflexo da sala começou a mudar, lentamente, como se uma névoa cobrisse o vidro, distorcendo tudo.
Carlos sentiu a garganta secar. Ele estava de volta a um hospital, parado no corredor diante de uma porta fechada. Aquele cenário o golpeou como um soco. Ele conhecia muito bem aquele lugar — era o hospital onde seu pai passara seus últimos dias de vida. Era uma memória que ele evitava revisitar. O corredor era exatamente como ele lembrava: as paredes de cor neutra, o cheiro de antisséptico, o silêncio opressor que parecia ecoar por todo o ambiente.
No reflexo, Carlos viu uma versão mais jovem de si mesmo, com o rosto abatido pela ansiedade e o medo. Ele estava parado diante da porta do quarto de seu pai, incapaz de entrar. Essa era uma lembrança dolorosa. Ele não havia sido forte o suficiente para ver seu pai nos últimos momentos de vida. Sempre lamentou isso, mas havia aprendido a conviver com o arrependimento.
Porém, no espelho, a cena tomava um rumo diferente. O Carlos no reflexo abriu a porta e entrou no quarto. No leito, o corpo pálido de seu pai estava imóvel, a respiração já fraca. O Carlos mais jovem se aproximou e, de repente, seu pai abriu os olhos, algo que nunca havia acontecido de verdade.
Carlos sentiu o sangue gelar. No espelho, o pai o encarava fixamente, com um olhar que misturava raiva e desapontamento. A boca do homem no leito se mexeu, e ele falou algo que Carlos não conseguiu ouvir. As palavras eram inaudíveis, mas seu impacto era devastador. O reflexo de Carlos começou a gritar em desespero, uma reação que ele sabia que nunca havia tido. Ele sempre se lembrava de ter sentido uma dor surda, um luto silencioso. Mas o reflexo mostrava uma cena de pânico, culpa e sofrimento muito maior do que ele jamais experimentara.
Carlos fechou os olhos, recusando-se a aceitar o que estava vendo. Aquela não era sua lembrança. Ele sabia que havia sido um filho ausente nos últimos dias de seu pai, mas nunca havia passado por aquela cena horrível que o espelho lhe mostrava. Era como se o espelho estivesse projetando os sentimentos que ele escondia, transformando suas emoções reprimidas em eventos fictícios e monstruosos.
Quando ele finalmente abriu os olhos, a cena havia desaparecido. O reflexo da sala voltou ao normal, e o espelho mostrava apenas o rosto cansado e pálido de Carlos. Ele caiu no sofá, com as mãos tremendo, a respiração pesada. Sentia-se sugado, como se o espelho estivesse consumindo sua energia, transformando suas memórias em algo incontrolável. Ele sabia que precisava entender o que estava acontecendo, mas também sentia um medo profundo de encarar a verdade.
Na manhã seguinte, Carlos não conseguiu evitar o espelho por mais tempo. Sabia que havia algo muito mais profundo e sinistro em jogo. A questão não era apenas a memória do seu passado distorcido. O espelho estava mexendo com sua própria percepção de quem ele era. Ele já não confiava mais nas suas lembranças. Cada vez que via uma cena do passado projetada no espelho, ela parecia misturar realidade com pesadelos, transformando-o em uma versão distorcida de si mesmo.
Decidido a acabar com aquele tormento, Carlos voltou à loja de antiguidades no fim da tarde, decidido a confrontar Antônio, o dono da loja. Quando chegou, a porta estava trancada, e a loja parecia abandonada. Ele bateu várias vezes, mas ninguém respondeu. Carlos olhou pelas janelas empoeiradas e viu o interior da loja tão misterioso e claustrofóbico quanto se lembrava. Sentiu-se frustrado e impotente.
Quando estava prestes a ir embora, uma senhora idosa que passava na calçada parou e comentou: “Está procurando pelo Antônio? Ele fechou a loja há mais de um mês.”
Carlos congelou. “Há um mês? Isso não pode estar certo… Comprei um espelho aqui há poucos dias.”
A senhora franziu a testa, claramente confusa. “Isso não é possível, filho. Antônio ficou doente e fechou a loja. Não tem ninguém lá há semanas.”
Carlos sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ele sabia que havia estado na loja, sabia que havia falado com Antônio. Mas agora, essa informação fazia seu estômago se revirar. O que estava acontecendo?
Inquieto, ele voltou para casa, com a cabeça cheia de perguntas. Sentia-se cada vez mais preso em um ciclo de medo e confusão. As distorções no espelho não eram apenas visões do seu passado — eram manipulações da sua realidade, como se algo muito mais sombrio estivesse controlando o que ele via e sentia.
Carlos sabia que precisava tomar uma decisão: ou enfrentava o espelho e tentava desvendar o mistério, ou se deixaria consumir completamente por ele.
Capítulo 5: Revelações do Passado
Carlos passou os dias seguintes evitando o espelho o máximo que pôde. As visões, as distorções de suas memórias, o fato de Antônio e sua loja estarem desaparecidos — tudo estava fora de controle. Ele já não confiava mais em seus próprios pensamentos. Mesmo os pequenos momentos de seu cotidiano pareciam manchados pela incerteza. Será que ele realmente tinha vivido aqueles acontecimentos do jeito que lembrava? Ou o espelho estava distorcendo tudo, incluindo sua própria identidade?
Era como se uma sombra tivesse se instalado em sua mente, e o espelho era o catalisador que liberava essa escuridão, trazendo à tona memórias dolorosas que ele nunca quis enfrentar. No entanto, ele sabia que fugir não era uma opção. Algo dentro de si o forçava a encarar o espelho mais uma vez, como se a resposta para o seu tormento estivesse ligada àquele objeto enigmático.
Naquela noite, incapaz de dormir, Carlos se aproximou do espelho com uma nova atitude. Desta vez, ele não estava lá para ser uma vítima das visões. Ele queria entender o que estava acontecendo. Ao se colocar diante do espelho, seu reflexo o encarou de volta, mas dessa vez com uma sensação estranha de quietude. Por alguns instantes, parecia que o espelho se recusava a mostrar qualquer coisa além de sua própria imagem cansada e abatida.
Então, lentamente, o reflexo começou a mudar.
Dessa vez, ele foi transportado de volta à infância, para a casa de seus pais. A sala de estar era exatamente como ele lembrava: o sofá marrom desgastado, as cortinas claras balançando suavemente com a brisa da janela aberta. No chão, um Carlos de seis anos brincava com carrinhos, completamente absorto. Ele estava sozinho, algo que não parecia incomodá-lo.
De repente, a porta da sala se abriu, e seu pai entrou. O homem parecia cansado, com a gravata afrouxada e a testa suada. Carlos sentiu uma pontada no peito ao ver aquela imagem — lembrava-se bem daquela época. Seu pai sempre voltava do trabalho exausto e irritado. Naquele dia específico, Carlos havia pedido algo que parecia insignificante na época, mas que agora, ao reviver a cena, revelava algo mais profundo.
O garoto Carlos olhou para o pai com olhos curiosos e perguntou inocentemente: “Pai, você pode brincar comigo?”
Seu pai parou, olhando para o filho, mas o cansaço e a frustração eram evidentes. “Agora não, Carlos. Estou cansado.”
Essas palavras, tão simples, haviam sido gravadas na memória de Carlos. Ele lembrava desse momento, mas apenas como um pequeno detalhe de sua infância. No entanto, o que o espelho lhe mostrou em seguida foi muito mais significativo. Seu pai não havia apenas recusado brincar. O rosto do homem no reflexo assumiu uma expressão de raiva que Carlos nunca havia notado antes, talvez porque fosse jovem demais para entender.
No reflexo, seu pai soltou um suspiro pesado, visivelmente irritado. “Você sempre me pede coisas quando estou cansado. Não pode me deixar em paz por cinco minutos?” A voz estava carregada de uma frustração que o Carlos adulto não conseguia lembrar de ter sentido na época.
O reflexo de Carlos, ainda criança, ficou parado por um momento, os olhos arregalados. Ele não chorou, nem insistiu. Simplesmente abaixou a cabeça e voltou a brincar sozinho, sem mais pedir a atenção do pai. Mas o que o espelho estava mostrando ia além da cena superficial. O espelho estava revelando o impacto profundo que aquele momento, aparentemente pequeno, havia causado. A expressão do menino no reflexo não mostrava tristeza, mas uma aceitação silenciosa de que não deveria incomodar seu pai. Uma aceitação que, de algum modo, havia moldado a forma como Carlos lidava com seus próprios relacionamentos no futuro.
Carlos deu um passo para trás, sentindo um nó na garganta. O espelho não estava apenas distorcendo suas memórias — ele estava revelando partes de si mesmo que Carlos havia enterrado por anos. O espelho estava cavando mais fundo, trazendo à tona os momentos que haviam definido a maneira como ele se relacionava com as pessoas ao longo da vida. Sua incapacidade de se conectar verdadeiramente, seu medo de pedir ajuda, tudo parecia remontar a esses pequenos fragmentos de memórias esquecidas.
Carlos fechou os olhos por um momento, tentando acalmar a tempestade em sua mente. Não podia mais ignorar o que o espelho estava lhe mostrando. Havia algo profundamente errado, não apenas com o espelho, mas com ele próprio. Ele precisava enfrentar esses fantasmas, essas verdades ocultas que o espelho estava revelando, por mais doloroso que fosse.
Mas por que agora? Por que o espelho estava lhe mostrando essas coisas neste momento da sua vida? O que estava tentando revelar que ele ainda não havia compreendido?
Quando Carlos abriu os olhos novamente, a sala ao seu redor parecia diferente. Ele não estava mais no reflexo de sua infância, mas de volta à sua própria sala, sozinho diante do espelho. As imagens haviam desaparecido, mas a sensação de vazio e culpa permanecia. Ele sabia que não poderia continuar fugindo do que o espelho lhe mostrava.
Ele precisava descobrir a origem desse espelho, quem o havia criado e, principalmente, por que ele estava mexendo tanto com suas memórias.
Capítulo 6: O Encontro com a Verdade
Carlos passou os dias seguintes mergulhado em pesquisas. Ele sabia que o espelho era a chave para entender o que estava acontecendo com sua mente e suas memórias. Precisava saber sua origem e, principalmente, por que ele parecia ter o poder de mexer com seu passado. Na internet, não encontrou informações específicas sobre espelhos capazes de manipular lembranças, mas leu lendas antigas sobre objetos amaldiçoados, artefatos que guardavam segredos e energias de seus donos anteriores.
Isso o levou a uma ideia perturbadora: talvez o espelho não estivesse simplesmente distorcendo suas memórias, mas sim revelando uma conexão muito mais profunda com algo ou alguém do passado.
Decidido a encontrar respostas, Carlos decidiu voltar à loja de antiguidades. Mesmo sabendo que a loja havia sido fechada, ele queria investigar por conta própria. Talvez encontrasse alguma pista, algo que pudesse explicar o que estava acontecendo. Naquela tarde, dirigiu até o centro da cidade e estacionou na frente do prédio. A fachada empoeirada parecia abandonada, e as cortinas fechadas escondiam qualquer vislumbre do interior.
Ele bateu na porta algumas vezes, sem resposta. A sensação de desespero começou a crescer em seu peito. O que faria se não conseguisse respostas ali? Bater em portas abandonadas parecia um último recurso desesperado. Quando estava prestes a desistir e voltar para o carro, notou algo estranho na janela ao lado da porta. Havia uma fresta nas cortinas, e por ali ele pôde ver algo brilhando no interior da loja. Era uma luz fraca, quase imperceptível, mas o suficiente para despertar sua curiosidade.
Carlos forçou a maçaneta da porta, e para sua surpresa, ela cedeu. A porta estava destrancada. Entrou devagar, o coração acelerado. O cheiro de mofo e poeira tomou conta de seus sentidos, e a luz fraca que vira da janela vinha de uma pequena lâmpada acesa ao fundo da loja. O lugar parecia intocado, como se tivesse sido abandonado às pressas. Prateleiras de objetos antigos forravam as paredes, e o chão estava coberto por uma fina camada de pó.
Ele chamou por Antônio, mas novamente, nenhuma resposta. Caminhou até o balcão onde, alguns dias atrás, havia negociado a compra do espelho. Agora, a loja parecia mais sinistra, como se carregasse o peso de décadas de segredos. Carlos vasculhou o balcão, buscando algo que pudesse lhe dar alguma pista. Entre papéis amarelados e cadernos velhos, encontrou um livro de capa dura com bordas douradas, coberto de poeira. O título estava quase ilegível, mas parecia ser algo relacionado a espelhos e reflexos.
Com as mãos trêmulas, Carlos abriu o livro e começou a folheá-lo. As páginas estavam cheias de ilustrações e anotações sobre objetos místicos, muitos deles espelhos.
A descrição coincidiu com o que ele vinha experienciando. O espelho descrito no livro era uma relíquia, e a história por trás dele dizia que, quanto mais uma pessoa interagia com ele, mais o espelho alimentava-se de suas memórias, até que a linha entre realidade e ilusão se tornava indistinguível. Carlos sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Será que o espelho que ele comprou era o mesmo objeto descrito naquele livro?
Enquanto folheava as páginas, encontrou uma anotação que o deixou ainda mais perturbado. O artesão que havia criado o espelho aparentemente o fizera para lidar com sua própria perda trágica. Sua esposa e filho haviam morrido em um acidente, e ele tentara recriar seus reflexos no espelho, desejando manter suas lembranças vivas para sempre. No entanto, o espelho começou a distorcer essas memórias, transformando-as em pesadelos.
O homem enlouqueceu, incapaz de distinguir o que era real e o que era apenas uma criação de sua própria mente. O espelho passou por várias mãos ao longo dos anos, e cada pessoa que o possuía enfrentava uma luta semelhante contra suas próprias memórias.
Carlos sentiu o peso da situação cair sobre ele. O espelho não era apenas um objeto antigo. Ele carregava uma maldição, uma força que manipulava as emoções e experiências de quem o usava. Mas o que mais o assustava era a possibilidade de que o espelho estivesse fazendo o mesmo com ele. Sua mente já estava em frangalhos, e ele não sabia até onde o espelho poderia levá-lo.
Decidido a se livrar do objeto, Carlos voltou para casa com a firme intenção de se desfazer dele de uma vez por todas. No entanto, ao chegar, encontrou uma cena que o deixou paralisado. O espelho, que antes estava na sala, havia sido movido. Agora, estava no quarto, bem ao lado da sua cama, refletindo a escuridão do ambiente.
Como isso era possível? Ele tinha certeza de que o espelho não estava ali antes de sair. Um arrepio percorreu sua espinha enquanto ele se aproximava lentamente. Sabia que algo sinistro estava acontecendo, algo muito além do que ele poderia entender. E, de algum modo, o espelho estava no centro de tudo.
Carlos sabia que precisava enfrentar a verdade sobre o que estava acontecendo, mas também temia que, ao fazer isso, perderia completamente o controle sobre sua própria sanidade.
Capítulo 7: A Decisão Final
Carlos ficou imóvel, encarando o espelho ao lado de sua cama. Aquele objeto, que agora parecia ter uma vida própria, havia se tornado um invasor silencioso de sua casa e, pior, de sua mente. Cada vez mais, o espelho agia como se soubesse seus passos, como se estivesse sempre um passo à frente, movendo-se e influenciando sua percepção da realidade. O medo tomou conta de seu corpo, mas algo mais profundo, uma curiosidade mórbida, o impulsionava a se aproximar.
Ele hesitou, mas sabia que o espelho exigia uma decisão. Havia duas opções: enfrentar o mistério e arriscar sua sanidade ou destruir o espelho e se libertar, abandonando a ideia de obter respostas. Mas o desejo de entender o que estava acontecendo com ele — e, mais importante, o que estava acontecendo com suas memórias — era inegável. Havia algo de muito errado com o que o espelho revelava, e Carlos sentia que não poderia seguir em frente sem encarar essas visões até o fim.
Com uma respiração profunda, ele se aproximou do espelho e, mais uma vez, encarou seu reflexo. A escuridão da noite ao seu redor parecia amplificada no vidro, como se o espelho fosse um portal para um vazio insondável. Por um momento, tudo ficou quieto. Seu reflexo parecia intacto, como se ele finalmente tivesse controle sobre a situação.
Mas então, sem aviso, a imagem começou a se distorcer novamente.
Dessa vez, Carlos viu uma versão mais velha de si mesmo no espelho, mas ele estava diferente. Seu cabelo estava grisalho, o rosto marcado por rugas profundas, e o olhar cansado carregava uma tristeza quase palpável.
O reflexo levantou os olhos para Carlos, encarando-o diretamente. “Você tentou esquecer… mas o que você deixa para trás sempre volta,” disse a versão envelhecida de Carlos. Sua voz era fraca, mas carregada de um peso emocional que o Carlos atual não conseguia compreender totalmente.
Carlos sentiu o desespero crescer dentro de si. Aquela visão parecia ser uma advertência — uma versão futura de si mesmo, isolado e consumido por suas lembranças, incapaz de se libertar do passado. O espelho estava lhe mostrando o que poderia acontecer se ele continuasse a ignorar suas memórias traumáticas, se continuasse fugindo.
A dor era quase insuportável, mas Carlos sabia que precisava fazer uma escolha. Ele não podia mais fugir daquilo que o espelho estava lhe mostrando, mas também não podia permitir que o objeto continuasse a controlar sua vida.
Tomando coragem, Carlos pegou o espelho e o levou até a sala. Sua mente estava em caos, mas ele sabia o que precisava fazer. Ele colocou o espelho no chão e, com todas as forças que ainda lhe restavam, pegou um martelo no armário de ferramentas. Seu coração batia descontroladamente enquanto ele segurava o martelo com firmeza, erguendo-o acima da cabeça.
“Chega,” sussurrou para si mesmo, enquanto baixava o martelo com toda a sua força.
O impacto foi ensurdecedor. O vidro estilhaçou-se em mil pedaços, espalhando-se pelo chão como uma chuva de cristais. Carlos olhou para os fragmentos por um longo momento, esperando algum tipo de alívio imediato, mas sentiu apenas um vazio crescente. O espelho, com todas as suas visões e distorções, estava destruído. Mas as memórias que ele trouxe à tona ainda permaneciam, agora mais claras do que nunca.
Carlos caiu de joelhos diante dos cacos, respirando pesadamente. Ele tinha destruído o espelho, mas sabia que isso não significava que seus problemas haviam acabado. Na verdade, talvez aquilo fosse apenas o começo de uma nova luta — uma luta interna para lidar com suas memórias, para confrontar as partes de sua vida que ele havia enterrado tão profundamente.
Olhou para o chão mais uma vez, seus olhos focados em um dos pedaços de vidro. Mesmo em fragmentos, o espelho ainda refletia algo. Ele viu seu próprio rosto, distorcido e multiplicado pelos cacos. Mas desta vez, não havia nenhuma visão do passado ou do futuro. Era apenas ele, encarando-se, finalmente sozinho com seus pensamentos.
Carlos se levantou, exausto, mas de alguma forma aliviado. O espelho já não tinha mais controle sobre ele, mas agora ele precisava lidar com o que estava por dentro. Sabia que a destruição do espelho era apenas uma etapa, mas o verdadeiro trabalho seria enfrentar as memórias que o espelho havia reavivado.
Fechou os olhos por um momento, respirando fundo. As perguntas ainda pairavam no ar, sem respostas claras. Mas uma coisa era certa: ele não era mais prisioneiro do espelho. Agora, restava enfrentar a si mesmo.
Capítulo 8: A Libertação Incompleta
Nos dias seguintes à destruição do espelho, Carlos tentou retomar sua vida. O trabalho, os amigos, a rotina — tudo parecia voltado ao normal, mas a sensação de inquietação persistia. O espelho havia desaparecido de sua vida, mas as memórias que ele trouxe à tona não se dissiparam como Carlos esperava. Cada vez mais, ele percebia que o problema não estava no espelho, mas nele próprio.
As lembranças do passado, aquelas que o espelho o obrigou a enfrentar, continuavam a invadir sua mente. Algumas eram vagas, distorcidas, mas outras eram incrivelmente vívidas. Ele se lembrava do rosto de seu pai, da expressão de frustração, dos momentos em que se sentiu abandonado emocionalmente. Também se lembrava das promessas que nunca se cumpriram, das amizades desfeitas e das oportunidades que ele deixara passar.
Era como se o espelho tivesse revelado uma parte de si que ele não estava disposto a encarar. Destruí-lo havia sido apenas o primeiro passo; agora, Carlos precisava lidar com a verdadeira questão: as feridas emocionais que havia acumulado ao longo de sua vida. A destruição do espelho não significava a destruição de suas memórias, mas sim a necessidade de enfrentá-las, uma a uma.
Certa manhã, enquanto tomava café, Carlos recebeu uma ligação inesperada. Era Júlia, uma amiga de infância que ele não via há anos. Eles haviam perdido contato, e a lembrança dela trouxe uma sensação de melancolia. Ela o convidou para um café, dizendo que estava de volta à cidade e queria se reencontrar. Relutante no início, Carlos aceitou. Talvez falar com alguém que conhecia seu passado o ajudasse a colocar suas memórias em perspectiva.
No café, Júlia estava radiante, mas havia algo em sua expressão que indicava que ela também estava lidando com seus próprios fantasmas. Eles conversaram por horas, revivendo histórias da infância e rindo de situações que antes pareciam tão significativas. No entanto, Carlos percebeu que havia um vazio naquela conversa. Ele não estava realmente ali, seu corpo presente, mas sua mente ainda vagava pelas memórias desencadeadas pelo espelho.
Em um momento de silêncio, Júlia olhou diretamente para ele e disse: “Você parece diferente, Carlos. Não sei dizer o que é, mas parece que algo te pesa. Está tudo bem?”
A pergunta o pegou de surpresa. Ele não queria falar sobre o espelho, não queria revelar a estranheza dos últimos dias. Mas sabia que não poderia continuar ignorando o que estava sentindo. Talvez, pela primeira vez, ele pudesse compartilhar suas angústias com alguém. Inspirando profundamente, ele começou a contar tudo, desde a compra do espelho até as visões perturbadoras que o assombraram.
Júlia ouviu em silêncio, seus olhos cheios de empatia. Quando ele terminou, ela soltou um suspiro e disse: “Eu não sei o que era aquele espelho, Carlos, mas parece que ele te forçou a lidar com algo que você vinha evitando há muito tempo.”
Carlos assentiu, percebendo que suas palavras faziam sentido. Ele havia passado a maior parte da vida fugindo de seus próprios traumas, escondendo as partes mais dolorosas de si mesmo. O espelho, de alguma forma, apenas havia acelerado o inevitável: a necessidade de encarar seu próprio passado.
“Você sabe,” Júlia continuou, “eu também tive que lidar com algumas coisas assim. Coisas que a gente acha que superou, mas que sempre voltam quando menos esperamos. Acho que você está no caminho certo, mas precisa de ajuda para seguir em frente.”
Carlos não tinha pensado em buscar ajuda. Ele sempre acreditou que poderia resolver seus problemas sozinho, que era forte o suficiente para lidar com seus traumas. Mas agora, sentado diante de uma amiga que o conhecia desde a infância, ele percebeu que isso não era verdade. A jornada que ele estava prestes a iniciar seria longa, e ele precisaria de apoio.
Nos dias que se seguiram, Carlos começou a considerar a possibilidade de buscar terapia. Júlia o encorajou, falando sobre sua própria experiência em lidar com traumas emocionais. Ela explicou que falar com alguém de fora, alguém imparcial, poderia ajudá-lo a enxergar suas memórias sob uma nova perspectiva.
Finalmente, depois de muita reflexão, Carlos decidiu que era hora de enfrentar seus fantasmas de uma vez por todas. A destruição do espelho foi um ponto de virada, mas o verdadeiro trabalho estava apenas começando. Ele sabia que lidar com suas memórias, com o impacto que seu passado ainda tinha sobre ele, seria uma tarefa árdua, mas necessária.
Na primeira sessão de terapia, Carlos sentiu um misto de alívio e desconforto. Era estranho expor suas vulnerabilidades para um estranho, mas ao mesmo tempo, havia algo libertador em falar sobre os segredos que ele havia guardado por tanto tempo. Com o tempo, ele começou a entender que as memórias que o espelho trouxe à tona não eram apenas reflexos distorcidos de seu passado, mas partes importantes de sua identidade que ele precisava processar e aceitar.
À medida que avançava em sua jornada de autoconhecimento, Carlos começou a perceber que o espelho não havia sido um inimigo, mas uma ferramenta, um catalisador para sua cura. Ele ainda não sabia se a história por trás do espelho era real ou fruto de sua própria mente perturbada, mas isso já não importava tanto. O que importava era que ele estava finalmente lidando com o que sempre tentou evitar.
Carlos sabia que a estrada seria longa, mas, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que estava no controle. O espelho pode ter mostrado os fragmentos de seu passado, mas agora cabia a ele juntar os pedaços e seguir em frente.
Epílogo: Reflexos do Futuro
Meses se passaram desde que Carlos começou a enfrentar suas memórias e a lidar com as feridas emocionais que o espelho havia revelado. O processo foi lento e doloroso, mas, pouco a pouco, ele começou a sentir uma leveza que há muito tempo não experimentava. As sessões de terapia o ajudaram a colocar em palavras o que ele sempre havia evitado, e a cada semana que passava, ele se via mais distante do caos mental que o espelho provocara.
Ainda havia dias difíceis, noites em que o sono era perturbado por sonhos confusos, mas agora Carlos tinha ferramentas para lidar com esses momentos. Ele aprendeu a aceitar que o passado faz parte de quem ele é, mas que não precisa definir seu futuro. As memórias continuariam a existir, mas ele tinha o poder de escolher como iria enfrentá-las.
Num fim de tarde, Carlos caminhava pela cidade, respirando o ar fresco e observando o movimento das pessoas. O céu estava tingido de um laranja suave, e os sons das conversas e risadas ao seu redor o envolviam, criando uma sensação de normalidade que ele começava a valorizar cada vez mais. Foi quando, ao passar por uma loja de antiguidades, ele viu algo que o fez parar.
Na vitrine da loja, um espelho antigo estava exposto. Diferente do espelho que ele havia destruído, este tinha um formato oval e moldura de madeira esculpida com detalhes elegantes. Carlos se aproximou da vitrine, intrigado. Por um momento, sua mente foi tomada pela lembrança daquele espelho maldito, o que havia levado sua vida ao limite da sanidade. Mas, desta vez, a sensação era diferente.
Ele olhou para seu reflexo no vidro e sorriu de leve. Não havia distorções, nem visões do passado. Apenas ele, ali, no presente.
Carlos continuou a observar o espelho por alguns segundos antes de dar meia-volta e seguir seu caminho. A vida seguia em frente, e ele estava preparado para acompanhá-la. O espelho que uma vez o atormentara era apenas uma lembrança distante, uma peça importante de sua jornada, mas que, agora, já não tinha mais o poder de controlá-lo.
Enquanto caminhava pelas ruas iluminadas do fim de tarde, Carlos percebeu que, embora o espelho tenha sido destruído fisicamente, ele tinha cumprido seu propósito. Ao trazer à tona as partes mais dolorosas de seu passado, o espelho permitiu que ele finalmente confrontasse suas memórias e seguisse em frente.
Carlos sabia que a jornada de autoconhecimento e cura nunca terminava completamente. Sempre haveria sombras do passado, cicatrizes emocionais que permaneceriam. Mas ele também sabia que tinha força para seguir adiante. O que o espelho revelou não o definiu; apenas o ajudou a ver com mais clareza o que ele precisava enfrentar.
Olhando para o horizonte, Carlos se permitiu, pela primeira vez em muito tempo, imaginar o futuro sem medo. O espelho da memória havia se quebrado, mas ele, finalmente, estava inteiro.
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